sexta-feira, 23 de setembro de 2011

TRATO COM O DIABO

Para emagrecer, mulheres aceitam tomar drogas e hormônios letais

(Antônio Marinho)

Sueli Bernachi, de 39 anos, passou a vida inteira brigando com a balança. Como não gosta de se exercitar, experimentou tudo quanto é dieta, mas se cansou do efeito “sanfona”. Então passou a comprar fórmulas à base de anfetaminas e hormônios, substâncias que causam sérios danos à saúde e podem matar. Na primeira vez perdeu 14 quilos em cerca de dois meses. Ficou feliz com o resultado estético, mas em compensação o seu organismo pifou.
- Comecei a ter dor de cabeça constante, insônia, taquicardia, tremedeira, palpitação, hipertensão; fiquei extremamente irritada. Descontava o meu mau humor até na minha família – conta. – Com o tempo, as fórmulas já não faziam efeito. E quando parava de usá-las engordava mais.
Sueli se livrou das fórmulas, que conseguia facilmente com médicos, por R$ 50 a R$ 140, fora a consulta, mas continua acima do peso. Apesar dos perigos dos remédios (a maioria com anfetaminas, hormônios tireoidianos, diuréticos e drogas que elevam o gasto energético), há quem recorra a eles para afinar a silhueta depressa. Com a chegada do verão, a procura aumenta.
Esse interesse alimenta um mercado lucrativo. Existem profissionais que recebem percentagem de farmácias de manipulação por paciente encaminhado e outros que vendem remédios no próprio consultório. Atitudes que ferem o código de ética médica e são passíveis de punição. É tão fácil que tem gente que compra via internet. As fórmulas proporcionam, em média, perda de dois a três quilos por semana. Para atenuar os efeitos dos produtos, médicos acrescentam ao “coquetel” tranqüilizantes e antidepressivos.
- O Brasil é o maior consumidor mundial de anfetaminas, pelo menos 60% do mercado. Já vi pacientes que precisaram ser internados, que tiveram infarto ou entraram em depressão com as fórmulas para emagrecer contendo substâncias proibidas ou perigosas. Só 10% sabem que estão consumindo algo que pode causar danos graves à saúde – diz o médico Flávio Madruga, membro da Associação Brasileira de Estudos da Obesidade (Abeso).
Ele lembra de uma moça de 19 anos que tomou por dois meses fórmula à base de anorexígenos (como anfepramona e fenproporex) e hormônios tereoidianos. Ela queria eliminar oito quilos. Perdeu cinco num mês e teve um surto psicótico.
- Quando chegou ao consultório não falava coisa com coisa, não queria se alimentar, tomar banho, babava. Apresentava sintomas de esquizofrenia, sem haver história da doença na família. Encaminhei ao psiquiatra – diz Madruga.

Médicos vendem receitas ilegais até pelo fax

· Além de doenças mentais, a pessoa volta a ganhar o peso que perdeu e quilos extras quando abandona os medicamentos. E há risco de dependência física.
- Se o paciente procurar um médico de confiança, praticar atividade física com orientação profissional e fizer dieta receitada pro nutricionista emagrace de forma saudável. Existem substâncias liberadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e que auxiliam no tratamento de perda de peso – diz Madruga.
Cláudia Cozer, doutora em endocrinologia pela USP e da diretoria da Associação Brasileira para Estudo da Obesidade (Abeso), denuncia que para obter receitas de fórmulas para emagrecer, às vezes, o paciente nem vai ao consultório.
- Tem médico que vende por fax. Alguns nem informam a composição da fórmula, impossibilitando detectar efeitos colaterais ou interação com outras drogas. Mesmo quando a pessoa usa por pouco tempo, pode sofrer arritmias, ansiedade, alteração de humor e depressão. Os hormônios tireoidianos são proibidos em fórmulas para emagrecer. Eles podem causar disfunção na glândula tireóide pelo resto da vida – alerta.
Também a endocrinologista Kássie Regina Neves Cargnin, da Câmara Técnica de Medicina (Cremerj), diz que as consequências com uso de substâncias proibidas são graves, com risco de morte. As formulações magistrais, muitas vezes ditas naturais, escondem a presença de anorexígenos, hormônios tireoidianos ou outras substâncias não divulgadas nos seus rótulos.
- Uma preocupação é que aumentou o número de adolescentes que tomam esses medicamentos, sem controle. Os anorexígenos podem causar transtornos alimentares, como anorexia e bulimia nervosa. Não há evidências científicas da eficácia e segurança de fórmulas naturais no tratamento da obesidade – diz Kássie.
Segundo o endocrinologista Walmir Coutinho, da Federação Latino-Americana para o Estudo da Obesidade, mesmo com medicamentos o objetivo principal contra a obesidade ou o excesso de peso deve ser a mudança de hábitos, incluindo a reeducação alimentar e a prática regular de atividades físicas:
- Nem todos precisam de medicamentos. Isso só o médico pode avaliar. Há drogas aprovadas e com diferentes mecanismos de ação. Algumas inibem o apetite ou aumentam a saciedade. Existem ainda os medicamentos de ação local no intestino e os inibidores de gorduras, que impedem a absorção de 30% da gordura ingerida. Todos têm efeitos colaterais.

Injeções contra gordura localizada causam danos

· Não só os anorexígenos são um perigo para as pessoas que desejam “secar” rapidamente sem fazer dieta balanceada e exercícios físicos. Um exemplo são as injeções de polifenóis de alcachofra, que teriam a capacidade de acabar com gordura localizada e reduzir medidas. Mas a Anvisa diz que “não há provas quanto à qualidade, segurança e eficácia desse tratamento”. Portanto, é proibida a fabricação, manipulação, distribuição, o comércio e o uso do extrato de polifenol de alcachofra.
Outra substância contra-indicada para eliminar gordurinhas localizadas é o Lipostabil (a fosfatidilcolina, nome genérico). De acordo com a Anvisa, não há autorização para fabricação, importação, distribuição, venda e uso desse produto no Brasil. Na verdade, é uma droga para tratamento cardiovascular, profilaxia e tratamento de embolia gordurosa e de aplicação exclusivamente endovenosa. Os efeitos colaterais a longo prazo não são conhecidos e o Lipostabil não tem indicação estética. Pode causar náuseas, ardência, anorexia, diarréia, depressão, ganho de peso, arritmias, queda de pressão e sensação de fraqueza.
A Anvisa proíbe também os anabolizantes esteróides, drogas à base de testosterona, com fins estéticos. Pela legislação sanitária nacional, portaria 344/98 e lei nº 9665/00, “esses produtos de indicação controlada devem obedecer a regras e critérios, desde o processo de produção e comercialização, bem como a obrigatoriedade de retenção da receita médica destinada a casos de atrofia muscular, entre outros.”
De acordo com o Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), os principais efeitos adversos dos anabolizantes são tumores no fígado, aumento de colesterol, hipertensão arterial, acne grave, retenção de líquidos e icterícia, além do risco de infecção pelo vírus HIV e da hepatite, devido ao compartilhamento de seringas. Nos homens, o testículo diminui de tamanho, eles podem sofrer disfunção erétil (impotêncial sexual) e infertilidade, aumento da próstata e das mamas. Nas mulheres, ocorre crescimento de pêlos faciais, alteração no ciclo menstrual, aumento do clitóris, engrossamento da voz e diminuição dos seios.
É preciso ter cuidado ainda com profissionais que se dizem ortomoleculares. O Cremerj (www.cremerj.org.br) e o Conselho Federal de Medicina (www.cfm.org.br) dizem que “ortomolecular não é especialidade médica”. Segundo o CFM e o Cremerj, todas as especialidades estão definidas na resolução 1.785. Vale a pena consultar os sites da Abeso (www.abeso.org.br) e da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (www.endocrino.org.br) antes de buscar “fórmulas milagrosa”.

O que é proibido e perigoso· VENDA DE REMÉDIOS: A comercialização de drogas em consultórios infringe os artigos 98 e 99 do Código de Ética Médica (CEM).· SUBSTÂNCIAS COMBINADAS: A Resolução 1.477/97 do CFM proíbe a prescrição simultânea de drogas anfetamínicas com um ou mais dos seguintes fármacos: benzodiazepínicos, diuréticos, hormônios ou extratos hormonais e laxantes para tratar obesidade ou causar emagrecimento. A Anvisa diz que é “vedada a prescrição, a dispensação e o aviamento de medicamentos ou fórmulas que contenham substâncias psicotrópicas anorexígenas com finalidade exclusiva de tratamento da obesidade acima das doses diárias recomendadas”.· PERCENTAGEM: Médicos que recebem percentagem de farmácias de manipulação infringem os artigos 87, 98 e 99 do CEM. Art. 87: “ser remunerado ou receber comissão ou vantagens por paciente encaminhado ou recebido ou por serviços não efetivamente prestados”. Art. 98: “exercer a profissão com interação ou dependência de farmácia, laboratório farmacêutico, ótica ou qualquer organização destinada à fabricação, manipulação ou comercialização de produtos de prescrição médica de qualquer natureza, exceto quando se trata de Medicina do Trabalho”. Art. 99: “Exercer simultaneamente Medicina e Farmácia, bem como obter vantagem pela comercialização de medicamentos, órteses ou próteses, cuja compra decorra de influência direta em virtude da sua atividade.”· FÓRMULAS SECRETAS: São as receitas codificadas, sem informação da composição, impossibilitando detecção de efeitos colaterais. Isto infringe o artigo 39: “receitar ou atestar de forma secreta ou ilegível, assim como assinar em branco folhas de receituários, laudos, atestados ou quaisquer documentos médicos.”· FALSOS PROFISSIONAIS: Art. 30: “delegar a outros profissionais atos ou atribuições exclusivos da profissão médica”. Art. 33: “assumir responsabilidade por ato médico que não praticou ou do qual não participou efetivamente”.

Fonte: Jornal O GLOBO (Domingo, 18 de novembro de 2007, pág. 44 – Ciência)